Cobras: Crônica dos tempos valentes

por Salomão Rovedo

Essa história quem contou foi o primo Quincas Oliveira, que não me deixa mentir, pois está vivinho da silva, acomodado lá pelas bandas de São Bento, cidade pacata da baixada maranhense, lugar de apreciadas peixadas, tiquiras esplêndidas, um moka de grande respeito e tapuiranas de algodão, leves e macias como as nuvens que o Senhor guarda no Paraíso. Quincas – aliás, Dr. Quincas, diplomado pela Faculdade de Direito da Ilha Rebelde e juiz de comarca – costuma descansar das querelas legais no sítio do amigo e compadre Moutão Cerejo. Hoje pode se dizer que é um sítio, mas já foi fazenda e das maiores.

O velho Moutão mal ficou viúvo resolveu adiantar-se ao tempo e logo repartiu os catorze mil hectares entre herdeiros, separando para si este cantinho onde poderia criar poucas reses, bodes e carneiros. Ali ficava a velha casa senhorial de cumeeira baixa, paredes largas rebatidas com taipa, portas e janelões que deixavam a brisa fresca invadir pacífica todos os recantos da morada. Além do mais era toda alpendrada, exceto na parte de trás onde ficava a cozinha, o fogão de lenha, a despensa e os cômodos para serviçais e empregados. Pegou tudo para si, antes que alguém mais afoito com a modernidade decidisse pôr tudo abaixo. Ademais, era o lugar ideal para pendurar as tapuiranas, receber os amigos e desfrutar o restante da vida como um anjo imaculado.

Agora estavam os dois amigos justo descansando do almoço seguido de café preto, retinto, moka colhido dos pés centenários escondidos debaixo da mata atlântica que se eterniza em estado de natureza pura ao derredor da Lagoa da Sororoca. Repousavam em silêncio, sesteando ao ritmo do rangido dos penduradores matutando sobre as delícias do muçum frito, arroz de vinagreira, molho de pimenta feito na calda da cabeça do peixe, que acabaram de desfrutar. Cada qual modorrava estirado numa rede, das quais só se via subir a fumaça azulada do fumo sergipano.

Moutão costumava deixar uma perna para fora da rede e com as pontas dos pés harmonizava o balanço ao ritmo dos berços de bebê. Às vezes ressonava leve, deixando que a cinza do charuto caísse sobre o peito peludo, outras vezes o charuto apagava, ficando esquecido entre os dedos amarelados pela nicotina. Na outra rede onde Dr. Quincas deitou o corpo saciado não se via nenhum movimento: as varandas ornamentadas com motivos dos pássaros locais, arriadas quase até o solo, só se mexiam ao sopro da brisa, a fumaça azul da cigarrilha se perdia no rumo do teto.

A modorra iria até o pôr do sol, quando o cheiro de bolos, cafés e assados acendesse de novo o apetite para a janta. Mas, como o ruído de um copo que cai ao chão, o silêncio foi quebrado com a chegada do vaqueiro Zifirino. Moutão e Quincas ouviram o leve tropel do cavalo e logo deram com a silhueta do Zifirino vista de longe chegando a galope. O campeiro travou o freio cravando os cascos do cavalo no chão erguendo poeira. Depois de acomodar o Tordilho debaixo da mangueira, onde podia descansar, beber água e comer milho, caminhou no rumo da casa. Trazia pendurada no pescoço, a modo de cachecol, uma cobra enorme. Tirou o chapéu para os cumprimentos de praxe, o corpo suado refletia a marca cruel da labuta diária.

– Tarde, patrão! Boa tarde, Dr. Quincas!

Ambos responderam ao cumprimento, mas logo em seguida reinou o silêncio reprovador. Moutão somente com o jeito de olhar pedia explicações. O próprio Zifirino chegava pronto para esse desafio, pois bem conhecia o patrão faz décadas, desde quando herdou do pai o cargo de vaqueiro e foi promovido a capataz. Se não fosse por necessidade extrema, matar bicho do mato ali era proibido e decerto tinha de arrumar desculpa bem boa para não aborrecer o patrão. Zifirino tirou a bichona dos ombros, mal aguentando o peso. À distância dava para ver que a cobra media mais de três metros, bem quatro, se duvidasse.

– Veja patrão, a baita surucucu que tive de sacrificar. Zifirino esticou a serpente com os dois braços abertos para mostrar o gigantismo da surucucu. A cauda e a cabeça penderam nas extremidades.

– Quem mandou? A pergunta ressoou como um estalido na tarde seca. Meia dúzia de pipiras que vasculhavam o alpendre em busca de farelos, arrematou voo ante o tonitruante som da palavra de Moutão. Dr. Quincas pigarreou sopesando a situação.

Os cachorros, atraídos pelo cheiro de sangue e carne, de imediato cercaram Zifirino em arruaças, saltos e latidos, querendo abocanhar a caça preciosa. O vaqueiro acariciava a cobra pelo corpo todo, admirando a coloração do couro, as manchas marrons, quase negras, que contrastavam com losangos amarelo-ouro e a barriga pintada de bege esmaecido, mas que ardia nos olhos quando reluzia ao sol.

– Porém patrão, de antecipado tive o pudor de certificar o quê era esta bicha, apurei bem as intenções dela. Visto essa parte, até o patrão sabe que em sendo surucucu ou jararaca é difícil prever boa atitude. O que existe na alma delas é maldade pura, nada mais, nenhuma bondade. Vi logo pelas manchas que não era muçurana. Ela tem a cor do chumbo, é negro-azulada, tem a barriga branca, mas não tem peçonha. A muçurana devora com facilidade a surucucu, a cascavel. É de pegar a cobra nos dentes fortes, se enrosca rápido, vai arrochando, arrochando, engole e pronto: está alimentada. Mas esta aqui – lascou uma palavra feia – esta aqui não tem jeito.

– Quem deu ordem? Os olhos de Zifirino se arregalaram um pouco demais assustado com a veemência do questionamento. Deu para ver o corpo tremular, até balançar um pouco, mas ele logo aprumou os pés, de novo acoitado na coragem com que era conhecido. – O seu pai não lhe ensinou? Dr. Quincas levantou-se da tapuiranas e chegou mais perto do amigo para reforçar apoio. – Hem-hem… Hum-hum…

– Verdade, verdade, patrão, mas quem primeiro atacou a surucucu foi o Tordilho, não eu. É verdade! Eita bicho bom! Não troque nem venda ele por nada desse mundo, patrão! Antes, pode se orgulhar de ter uma montaria como essa! Eu conto como foi, já, já. Eu tava fazendo aquela ronda diária pra saber da saúde do plantel, pra contar as reses, pra ver algum bezerro ou cabrito parido de recente, pra curar alguma bicheira, um lanho provocado por tiririca ou briga de machos – sempre acontece, né?

Ao ouvir seu nome, o Tordilho relinchou, bateu os cascos dianteiros, sacudiu-se para lá e para cá repetidas vezes, cavoucou tanto a ponto de levantar poeira do chão.

– Foi na beira da lagoa, não foi? Moutão sabia que Zifirino não era capaz de matar qualquer bicho só por matar. Algo ocorreu, alguma coisa que ele não pôde evitar, inda mais sabendo da inevitável admoestação que receberia. – Se mire na atitude de seu pai, que não pisava numa saúva, não matava uma mosca sem ordem!

Zifirino enquanto arrumava a narrativa na cabeça, tirou da bainha uma faca de caça. O reluzir do aço Solingen cintilou gélido como um raio. Pelo risco do fio, mesmo à distância, dava para ver que o corte da faca era igual navalha. Zifirino pegou a surucucu pela cabeça, levantou o máximo que pôde com o braço esticado para o alto, enfiou a ponta da faca abaixo da mandíbula e com uma fisgada vigorosa levou o talho até o rabo da bichona.

– Numa olhada só, patrão, contei três novilhos e seis cabritinhos pastando bem perto. Tudo novinho e saudável, cada qual vigiado de perto e protegido pelas matrizes.  Mas pra bote de surucucu não tem defesa nem proteção que dê jeito. Bom, bom, fui assim, arrodeando pra lá e pra cá, de olho aberto, como sempre faço. Acredite patrão, num sabe Dr. Quincas, nem precisava dar direção, nem mostrar como fazer o serviço: o Tordilho fazia tudo sozinho… Eita bicho bom de campear!

– A surucucu mora bem ali mesmo na Lagoa da Sororoca. É ela quem vigia a água, a praia, a chuvarada, mesmo quando tudo vira um pântano só. Moutão não deixava brecha para Zifirino crescer: dar voz a peão é o mesmo que dar asas a cobra. Bateu a cinza do charuto e deu uma longa baforada, formando uma nuvem azul e cheirosa. Então?

Zifirino respirou fundo, aguentou a reprimenda, mas não cessou o labor com a cobra. Voltou parte dela para o ombro e com a eficiência da Solingen apartou por dentro toda a cabeçorra, sem um mínimo dano ao couro. Separados carne e couro, Zifirino libertou a parte de cima e foi puxando de com força – a pele da surucucu foi se soltando como um esparadrapo, de cima a baixo, até parar no falso chocalho da ponta do rabo. Depois Zifirino cortou a carne da cobra em grandes pedaços, repartiu entre os cachorros, que avançaram como feras para o petisco. A melhor parte, carne fresca e reluzente, Zifirino partiu ao meio e guardou no alforje.

– Bom, bom, patrão, estava já por dar a ronda por encerrada e vinha correr pra contar as novidades, quando o Tordilho bufou três vezes mostrando os dentes e cravou as patas no chão. Isso é mau sinal, indicativo de alerta. Nessas horas é bom seguir o instinto e não contrariar a montaria, como muitos fazem. Apurei a vista pra localizar o quê Tordilho viu e eu não vi: olhei prum lado, vasculhei por outro, controlei o cavalo no punho, firmando o cabresto, acariciando o pescoço.

A cada admoestação – Dr. Quincas Oliveira bem que reparou – o peito de Zifirino arfava estufado de raiva. O chicote de couro batia na perneira num rito nervoso, impaciente. Parte da comunicação entre as gerações se esfarelava ao vento e Zifirino estava uma geração à frente do pai, humilde, obediente, subjugado ao poder sem lei – os tempos mudaram. Por isso, Dr. Quincas ficava atento aos gestos mais mínimos, percebia o tremor que feria o sentimento de Zifirino, mas por princípio se abstinha de intervir.

– Essa surucucu é cobra serena, de vigiar o pedaço, só faz mal a quem ataca. Moutão resmungou, lutando para manter a autoridade, que não delegava. Trazia essa regra herdada dos pais, avós e bisavós, sempre tendo em mente nunca aceitar que façam algo sem ordem expressa. É perigoso. Assim nascem as revoluções. Mas também tinha consciência de que Zifirino não era igual ao pai. Estudou, tirou diploma de técnico veterinário, era ambicionado por outros fazendeiros.

Dava para notar que Moutão Cerejo e Dr. Quincas Oliveira estavam tensos, mas concentrados na história. Zifirino, por seu lado, examinava com maior cuidado a cabeça da cobra, cavoucando as mandíbulas com a ponta da Solingen aqui e ali até expor duas pequenas bolsas guardadas nas laterais da goela. Cada uma daquelas ampolas armazenava boa quantidade de um líquido leitoso, amarelado. Era a peçonha – uma pequenina gota daquele fluido circulando pelo sangue mata em poucas horas mesmo o cabra mais forte.

– Olhe aqui, patrão, olhe Dr. Quincas – disse em tom exclamativo e expôs a cabeçorra à vista dos ouvintes atônitos, de olhos arregalados, admirados com a quantidade da toxina tão perto deles. – É aqui que ela guarda o veneno, antes de injetar na vítima. É tanta peçonha que dá pra derribar um búfalo, quanto mais um cavalo, um novilho, um homem! Com todo cuidado Zifirino separou as glândulas da carne, embrulhou num saquinho, guardou em outra partição do alforje.

Aproveitando a pausa que Zifirino oferecia com esses procedimentos que tinham de ser feitos de imediato Moutão acendeu outro charuto, Quincas foi lá dentro pegar o bule de café que se mantinha quente em cima da chapa do fogão. Trouxe também três canecas, que serviu para si, para o amigo Moutão e outra que deu ao vaqueiro, encerrando a animosidade aparente.

– Zifirino, tome aqui um cafezinho. Zifirino se aproximou, pegou a caneca e deu uma golada, estalando a língua. Um café assim, quente e forte, bebido em conjunto, é capaz de apaziguar a maior desavença e levantar qualquer desânimo. Para Zeferino só faltava acender um charuto daquele fumo sergipano para arrematar o prazer.

– Obrigado Dr. Quincas, só o senhor sabe como chega bem esse café numa garganta seca! Zifirino repetiu ainda mais dois sorvos com tanta vontade, como se estivesse num deserto morrendo de sede. – Obrigado Dr. Quincas, obrigado patrão.

Continuando o trabalho com a serpente entre uma frase e outra, Zifirino agora descarnava a cabeçorra da surucucu. Cavoucou cuidadoso e exemplar, como um médico cuida de operar o bisturi, um artista que manobra a faca Solingen, como um gênio toca seu violino. Por fim separou o couro da ossada, guardou tudo no embornal para que nenhum cão assumisse o risco de morte que a cabeça trazia, guardada ainda muita peçonha em suas veias.

– Bom, bom, patrão, Dr. Quincas, foi aí que reparei numa moita de colonião, debaixo da sombra, o primeiro sinal da cobra. Assim de repente não deu pra saber se era cascavel, surucucu ou mesmo uma boiúna. Descartei logo a cascavel, porque o guizo não denunciou – é a primeira coisa que a cascavel faz, vaidosa como quê! Mas logo a surucucu se empinou em posição de ataque, a bichona estava a dois, três metros da gente, assim sem delongas – vupt! O Tordilho saltitou pro lado, pro outro, empinou os cascos dianteiros, martelando entre si – toc, toc, toc, toc – a luta mal começou e acabou o sossego!

Antes que o patrão recomeçasse o carão, Zifirino emendou a narrativa: – A surucucu estava bem ali na frente de nós, patrão, bote armado e pelo tamanhão o senhor vê que o alcance é longo! O alvo era sem dúvida o pescoço do cavalo! Pois Tordilho já tinha prevenido tudinho, valente, rápido como um raio, empinado nas patas traseiras, cruzava os cascos, como escudo e navalha, defendendo-se e atacando a serpente. Eu jogava o cabresto prá lá e pra cá no ritmo da refrega, no comando do ataque. O retinir da ferradura era música, vapt-vupt pra lá, juque-juque pra cá, os cascos eram navalhas. O tempo corria, quase meia hora, pois em certeira arremetida, Tordilho acertou de cheio a cabeça da malvada. Não tinha outra vez, era aquela e só! A surucucu, ferida de morte, rápido se esgueirou de banda, sumiu entre as touceiras.

Zifirino raspou as sobras de nervo e carne, pegou o couro por inteiro, abrindo-o de lado a lado. Era uma verdadeira peça de arte – Moutão e Quincas reconheceram logo a pintura, mirando um para o outro, esbanjando aquele olhar cúmplice de satisfação. Zifirino estendeu o couro todo, de jeito tal que o desenho das manchas se reproduzia espelhado lado a lado, como nas asas das borboletas, como nas pedras preciosas – a esmeralda verde! O sol já descaindo no horizonte abrilhantava mais ainda o espetáculo. Nesse instante Moutão Cerejo perdeu a fala, mas deu para ouvir o Dr. Quincas respirar fundo.

– Apeei do Tordilho mode seguir a trilha de fuga que a maldosa empreendeu, achei ela uns metros adiante, encolhida como uma minhoca, vencida e lerda, pronta pra esperar a morte. Os cascos do Tordilho fizeram um estrago grande, patrão, quase deceparam cabeça fora por completo, bem aqui, olhe. Fiquei cara a cara com a bichona e quando ela me viu os olhos cintilaram de ódio. Mas tinha também um tanto de piedade – não sei se era eu que via isso em respeito à valentia da surucucu – achei que não trazia mais aquela maldade assassina, de quando deu o bote mortal no Tordilho. Agora, ao contrário, arriava a cabeçona no chão, pedindo fim ao sofrimento.

– Mas eu mandei Zifirino? Eu mandei? Moutão, refeito da emoção, só reclamava agora por teimosia. Não havia nada a condenar no que fez Zifirino e tinha por conta que houvera de perder um ou dois novilhos e cabritos se aquela surucucu alcançasse as reses. Então, a ação do vaqueiro economizou algum prejuízo que ele teria. Neste momento seus olhos estavam enfeitiçados pela beleza do couro.

Os tempos mudaram, velho, os tempos mudaram – Zifirino resmungava inaudível ao vento, olhar preso no chão empoeirado. O urro das palavras do velho Moutão rasgava o ar de lado a lado enroscando nos ouvidos, perdia-se abafado pelo ladrido dos cães enfurecidos no terreiro, disputando as sobras da carne que Zifirino distribuiu.

– Na verdade patrão, na verdade quando tudo aconteceu, momento agitado, não dá nem pra pensar nada. A minha cabeça se voltou direto pra proteger o patrão, a riqueza do sítio, a vida das reses. Me lembrei do finado Dr. Zeca Pinto, vizinho, amigo muito chegado ao patrão e ao Dr. Quincas, num sabe? O senhor se lembra Dr. Quincas? Meu pensamento foi direto, guiado por Deus, pro que aconteceu ao finado Zeca Pinto. Ele não tinha o mesmo jeito que o patrão tem de se deitar na tapuirana? Trocando o charuto pelo cachimbo, não tinha o mesmo gosto de pitar um fuminho depois de traçar um muçum farto e beber um moka bem preto? Tinha sim o mesmo sestro de balançar a rede com a perna de fora, pra lá, pra cá… Tinha sim.

Mais uma vez Zifirino usou os dois braços para exibir o couro que tinha acabado de descarnar, voltando para o sol o lado que iria curtir. Era, sim, uma beleza! Uma maravilha que deixou Moutão Cerejo e Quincas Oliveira de olhos arregalados, presos ao cintilar da pele da cobra que reverberava ao sol poente. Um olhava para o outro e aquele olhar dispensava palavras. – Que couro! Que couro! Era só o que pensavam.

– Pois num tava o finado Zeca Pinto assim como o patrão e Dr. Quincas sesteando na tapuirana o almoço farto? Tirando um pito do cachimbo debaixo do cajueiro? Só que, diferente do patrão, o finado Zeca Pinto levava de quebra um litro de tiquira, que ficava a bicar hora e vez, lembra Dr. Quincas? Pois não é que tava ele assim derreado, com a perna de fora balançando a rede, quando passou ali perto uma jararaca caçando pra matar a fome e sentiu na perna do Zeca Pinto um petisco? Foi como um raio – vupt! Zeca Pinto recolheu a perna num zás, mas aí já era tarde, o estrago tava feito, num lembra Dr. Quincas?

– Zifirino! Moutão gritou como se tivesse sentido a virulência da picada na própria perna. A lembrança do finado amigo Zeca Pinto também mexeu com ele, deixou sequelas. – Deixa pra lá! Deixa pra lá! Já entendi! Já entendi! Mas que seja a primeira e última vez, viu Zifirino? A primeira e última vez! E ponha reparo: logo depois que esse couro tiver curtido e seco você me traz ele aqui, que eu quero ver e mostrar para o Dr. Quincas, viu?

Dando por encerrada a desfeita, Zifirino se dirigiu rumo ao Tordilho resmungando infeliz. O couro! A pele da surucucu! O seu couro! Apertou o resto da surucucu ao peito: a pele era também do Tordilho, que foi quem fez tudo. Zifirino caminhava e pensava e resmungava, às vezes em voz alta, como um urro de suçuarana. Mas também trazia contentamento no íntimo: na presunção de uma picada de jararaca ou surucucu, conseguiu pôr ao chão a fortaleza que era Moutão Cerejo, mesmo com todo o adjutório do Dr. Quincas Oliveira.

– Juro patrão – Dr. Quincas sabe que não minto – eu só pensei no patrão, com a perna balançando pra fora da rede, vai-e-vem, vai-e-vem que nem um bercinho de bebê, na modorra da tarde. Só me veio na cabeça o Dr. Zeca Pinto, sesteando que nem o patrão, derreado com a perna de fora balançando, sem sequer sonhar que ali no seu destino estava escrito a jararaca amaldiçoada. Foi só isso, patrão, pois trago sim, patrão, trago a pele curtida sim!

Zifirino montou o Tordilho de um salto e só com as rédeas, sem usar esporas, principiou a trotear de volta pra casa. O couro da surucucu não saía de seu pescoço. Os cachorros fizeram festa de despedida em volta do cavalo, correndo, latindo e saltando de alegria.

– E ainda mais, Zifirino: dê a metade dessa carne que você tem aí no alforje pra Benedita fritar. Eu e o Dr. Quincas vamos comer ela com farinha d’água na janta daqui a pouco, a pus de tirar gosto da cachacinha que haveremos de beber em homenagem à valente surucucu que você mais Tordilho enfrentaram. É verdade sim: valente que nem ela não tem.

O Dr. Quincas Oliveira, que não era de abandonar as intrigas de nenhum amigo, reproduziu a fala com outras palavras: – Isso mesmo Zifirino, não foi maldade o que você fez, não. Não foi mesmo! Nem carecia de ordem, dada a premência dos fatos! E com essa metade de carne que a Benedita vai fritar, eu e o Moutão vamos celebrar o heroísmo do Tordilho e a valentia de todas as surucucus do mundo, com a melhor farinha d’água e a melhor aguardente d’além-mar!

O sol se espreguiçava sumindo bem longe das varandas. Moutão Cerejo e Quincas Oliveira foram lá dentro fazer necessidade e na volta trouxeram o velho litro de Conhaque Macieira, cuja fórmula é protegida nos porões das vinícolas de Bombarral desde 1885 pelos descendentes de José Guilherme Macieira. O vasilhame de rótulo roído pelo tempo, guardado a quatro chaves por Moutão Cerejo, só dispara o estampido da rolha quando de comemorações assim.

Os amigos renovaram o caneco de café preto, desta vez acompanhado de um bom grogue do conhaque. Acendendo cada um o seu fumo, voltaram a se derrear na tapuiranas, a vista presa na vermelhidão cinzenta que costuma anteceder as noites serenas de São Bento. Lá de dentro recendeu o cheiro aromático da carne frita no óleo de coco babaçu…

Rio de Janeiro, Cachambi, julho/agosto de 2013.