Travessia

por Salomão Rovedo

“Estás completando gloriosamente a tua travessia”. Disse-me abrindo os braços de Norte a Sul o amigo Moacyr. Aceitei o abraço, mas não a grandiloquência do gesto, que veio moldurado com uma dessas frases feitas, às quais – confesso – não sou chegado. Tenho cuidados: a frase feita parece o destino perfeito, a sorte exata, o Norte ideal, mas não é, ao contrário, é enganosa, traz muita lantejoula, muita purpurina, como a filosofia do Carnaval. Estaria Moacyr querendo repetir Lao Tsé ou imitar o camarada Mao Zedong, na famosa frase sobre a longa caminhada? Mao atravessou o território chinês (um pouco maior que Cururupu), na guerra contra os lacaios capitalistas, mas o Moacyr? Não creio. Mas aceito a sinceridade do retrato que tentou fazer da minha existência. Viver é de fato uma travessia, uma viagem Terra-Marte, da qual se sabe o destino, mas desconhece o que irá ocorrer durante a peregrinação. É justo esse interregno entre o primeiro e o último passo que mora o ‘corpus’ disso que se chama vida, existir. Alguns conseguem (ou pensam assim, não sei), pôr ordem na travessia, transformar o caos cósmico num Caminho de Santiago minado de placas indicativas, pousos aconchegantes, fontes de águas cristalinas, vinhos Albarinhos, culinária santa! Muitos (como este que escreve) – vedados como burro de carroça, não conseguem ver um palmo adiante, se maravilham com a paisagem e é só. Bola pra frente! Anti-herói da criação divina, manchei o catálogo da Fábrica-Celestial-de-fazer-Gênios. A única e pouco gloriosa travessia que realizei, foi na insensata vez que, rapaz, resolvi cruzar a nado da Av. Beira Mar à Ponta d’Areia. Cheguei do outro lado, desmaiei. Quase morri! Não estaria aqui abraçado ao Moacyr com a frase grudada ao ouvido: “Estás completando gloriosamente a tua travessia”. (28/03/2023)