Salomão Rovedo: Um conto, uma história

Literatura & Arte

Categoria: Crônicas

Achados e perdidos

Esta é a segunda coletânea de poesia que reuni em volume. A primeira se extraviou em 1963 na estrada em viagem de São Luís para o Rio de Janeiro e nunca mais foi encontrada. Ou então ficou mesmo na casa do vizinho que pedi para fazer a remessa, cujo frete deixei pago. Depois essas poesias se espalharam tanto em outros volumes quanto pela internet. Agora que reencontrei os versos na montagem original vai aqui como registro. Como já disse algures, não tenho a capacidade de análise crítica que me faça destruir coisas que fiz e escrevi no passado, como se elas não valessem nada. Afinal, se ninguém gostar, gosto eu, com uma visão do que eu era e como eu pensava. Me faz bem e até descubro outros eus espelhados em páginas já amareladas pelo tempo. E tem mais”. Esse texto serviu de introdução à reunião de poesias a que dei nome de “Pobres Cantares”, escrito entre 1981/1983. Outros textos tiveram igual destino. De memória, cito: “6 Rocks Matutos e 1 Romance Rasgado” (poesia), “Literatura de Cordel” (ensaio), “Mate às Cinco” (novela), “Façanhas de Macunaíma” (farça), “Vida e morte de Orígenes Lessa” e “Está fundada a A.B.C.” (cordel) – talvez mais um e outro viagem por aí anônimos. Esses aí citados foram recuperados graças a intervenção de amigos, que os tinham guardados com mais carinho que o autor. Sempre fui um cara assim: me pede, eu dou. Mas não abusa… Considero que reter uma coisa que pede para ser disseminada, é o mesmo que podar o conhecimento. Essa atitude também é uma reação contra a ideia de propriedade, que tem direitos e deveres. Egoísmo, pecado. É claro que estou certíssimo. É claro que estou erradíssimo. Por essas e por outras, depois de discussões e interlocuções com vários editores que conheci, certo dia resolvi botar tudo que escrevo para distribuição (download) gratuita pela internet. Depois descobri que tinha gente ganhando dinheiro com isso. Eu não conquistei nem o Nobel de Literatura. Mas ganhei amigos, leitores, dignidade. (farça=entremez). Cachambi, Carnaval de 2024.

Juninas

Então junho chegou. Maio deixou todas as mães felizes, com as recordações do dia treze de maio, aqui e na Cova da Iria. Estamos em junho e eu poderia cantar oh! que saudades que tenho da aurora da minha vida, da minha infância querida que os anos não trazem mais – como Casimiro de Abreu – porque as festas juninas eram parte desse pedaço de vida. Eu era um garoto que amava os Beatles e os Rolling Stones, não era belo, mas mesmo assim, havia mil garotas a fim, parou de crescer cabelo na palma da mão, a penugem do bigode escureceu, coisas desse tipo. Agora vejo a na TV as festas juninas de 2023, o migrante bisneto de Virgulino chamando de canjica o meu mingau de milho – o munguzá dos outros – anunciando música sertaneja em vez de forró, coisa tal e qual posso classificar de ignorância ou futurismo. Mudou o festejo junino ou mudei eu? Aonde estará aquela canjica de milho verde, amarelada como o ouro de nossa bandeira, toda coberta com um lençol de canela? Onde acharei uma bandeja de manuê assado em fogão de barro, cuja superfície as cozinheiras deixavam enfarruscar até imitar o couro da onça pintada? Mudou o São João ou mudei eu? E por fim, cadê o urro das ronqueiras, dos pandeirões, dos tambores e matracas? Cadê o Boi? Os brincantes devoravam a carne salpresa assada, com farofa, linguiça, toicinho, aqueciam o espírito com grogues de cachaça e tiquira no gargalo, aqueciam o couro dos tambores no braseiro para recuperar o tom original, o soar seco e ritmado das matracas do Boi da Madredeus acordava a todos na madrugada, quando o cantante pedia licença ao dono da casa para receber a visita do boi. Visita que só acabava sol alto, na chamada para o almoço. Ora… (09/06/2023)

Gatos não guardam rancor

GATOS NÃO GUARDAM RANCOR

ou

ITINERÁRIO DA PANDEMIA

Salomão Rovedo, Rio de Janeiro, Brasil

1-MUNDO

A pandemia de um dos vírus mais ferozes, o Covid-19, que assolou a humanidade no ano do senhor de 2020, além das tragédias pessoais e familiares sem conta, afastou a convivência cotidiana de muitas famílias e pessoas. Foi o caso do Cardoso: a família toda saiu para as férias de fevereiro, deixando o quase oitentão só em casa – quer dizer, sozinho não, ficou com ele o gato. No princípio foi tudo bem, sem nenhum registro especial capaz de ofuscar a luminosidade mediterrânea do sol das praias e lagoas de Barreirinha – cidade litorânea do Maranhão que escolheram para passar os dois meses das férias que os pais fizeram coincidir com as férias escolares: nada mais perfeito. Aliás, outras férias passadas também se ajustaram ao calendário e até um inesquecível inverno nevado foi desfrutado em Gramado, com direito a chocolate quente e vinhos locais.

2-WUHAM

Atletas que participaram dos Jogos Militares Mundiais de 2019 em Wuhan, China, tiveram sintomas do Covid-19. Muitos atletas dos Jogos Mundiais Militares estão doentes Élodie Clouvel foi direta. A pentatleta da delegação francesa declarou que havia contraído Covid-19, assim como outros membros da delegação, segundo constatou um médico militar. O testemunho de Élodie Clouvel não foi muito divulgado na época, mas novas declarações iguais de outras delegações esportivas militares agitaram os debates. O nadador de Luxemburgo Julien Henx disse que dois companheiros de equipe adoeceram durante a competição. A TV francesa revelou o testemunho de um soldado que revela em detalhes os sintomas da doença que contraiu no final de outubro: acamado, com febre, dores e dificuldades respiratórias. Vários colegas de equipe enfrentaram as mesmas complicações. Os atletas, segundo informações militares, não foram testados e dificilmente serão testados.

(MISTRAL)

Do piso gelado em que te puseram te deitarei na terra úmida e ensolarada. Que vamos dormir nela eles não sabiam: sonharemos sobre a mesma grama. Te deitarei na terra ensolarada com uma doçura de mãe para o filho adormecido e a terra há de fazer-se berço de bruma ao receber teu corpo dolorido. Então polvilharei a terra de pétalas de rosas e no chão azulado da leve poeira de lua os despojos luzidios irão ficando unidos. Partirei cantando vinganças formosas porque àquele fundo recôndito mão alguma descerá para disputar teus ossos.

3-TREVISO

Os Jogos Mundiais Militares, que reúnem cerca 10.000 atletas de 100 países diferentes, foram realizados semanas antes do primeiro caso oficialmente reconhecido de Covid-19 em 17/11/2019. Um esgrimista italiano revelou que diversos atletas ficaram doentes com sintomas do novo coronavírus durante a competição. O torneio foi disputado em outubro de 2019 e, segundo o esgrimista Matteo Tagliariol, houve contato com a Covid-19 na época. Todos ficamos doentes, os que estavam em no meu apartamento e muitos também de outras delegações. Tanto que o centro médico quase entrou em colapso, relembrou o esgrimista. Tagliariol também afirmou que teve febre e tosse por três semanas e nenhum antibiótico que tomou fez efeito. Tive febre e tosse por três semanas, depois foi a vez do meu filho e da minha companheira.

4-BRASÍLIA

O Brasil garantiu a terceira posição do quadro de medalhas dos Jogos Mundiais Militares, consolidando a posição de terceira maior potência desportiva militar entre os países que integram o Conselho Internacional do Esporte Militar (CISM), organizador dos jogos. O Brasil esteve presente em todas as edições do Jogos Mundiais Militares. Em Wuhan o Brasil fez a terceira melhor campanha na história dos Jogos Mundiais Militares, garantindo lugar entre as potências do evento. Quanto a Covid-19, os aletas-militares brasileiros jamais foram consultados, nem examinados, como se cumprissem voto de silêncio.

(MISTRAL)

Este imenso cansaço será maior um dia e a alma dirá ao corpo que não quer seguir arrastando tanto peso pela rude via por onde vai a gente alegre de viver. Sentirás que ao lado cavam briosamente a outra morada na quieta cidade. Espero que te tenham coberto totalmente. Depois falaremos por toda eternidade. Só então saberás o por quê não amadurece para os fundos ossos a tua carne, todavia tiveste que deitar sem fadiga e fenecer. Se fará luz na obscura zona dos sinos. Verás que em nosso pacto havia signos e astros: quebrado o trato eterno terias que morrer.

5-CACHAMBI

O velho ficou com o gato. O gato ficou sem ninguém. Desde quando velho é companhia de gato? Um cão pode ser rebocado à coleira e passear aqui e ali, mijar nas árvores, postes e muros – para irritar os donos das casas – pode latir para cães e outros bichos de estimação, pode foder com a cadela do amigo enquanto eles conversam bebendo cerveja, o cão, enfim, tem muitas opções de lazer. O gato não. O cão tem latidos entendíveis, puxa você pela calça para mostrar o que quer, come qualquer porcaria – mas caga em qualquer lugar e mija na roseira, nos pés de azaleia, debaixo da cama da vovó. O gato não. Tem uma caixa de areia e sílica na qual dá um jeito de se colocar com as duas patas dianteiras de fora para cagar direitinho, sem alardes. Depois tenta cobrir o cocô com areia, arrasta a pata pra lá e pra cá, mas como não consegue, exvlama um “foda-se” na fala dos gatos e vai tratar de conseguir com miados tristes alguma porção de sachê feito com proteína de soja, sabor salmão e tratar de outros assuntos como se lamber e dormir. O cão não. Enquanto isso o velho se acomoda no sofá, bebe uma cerveja, come dois pedaços de pizza que sobrou na geladeira, um sanduíche feito com sachê do gato (que pensa ser patê) liga a TV para assistir ao futebol, mas na verdade tudo o que consegue é dormir até o dia seguinte.

6-CABURÉ

Enquanto persistia o isolamento social os humanos ficavam no local onde foram passar as férias. Por esse tempo passaram as festas de fim de ano com milhões de fogos de artifício iluminando de falsas estrelas o céu da Mãe Terra, de acordo com o fuso horário, pois, segundo Galilei, a Terra se move, gira como um pião. Em Caburé, litoral do Maranhão onde estão as dunas alvas que compõem os Lençóis Maranhenses (posto que a região é pródiga em desertos assim batizados)turistas e locais se dividiam entre as pousadas, as Vilas de Atins e Caburé – que ficam próximas à foz onde o Rio Preguiça mistura suas águas mansas e inférteis de pescados ao Oceano Atlântico. Ali a Petrobrás abriu inúmeros poços de exploração e encontrou grandes jazidas de gás natural e algum petróleo. Os poços foram fechados até que houvesse compensação tecnológica para a extração em terreno difícil num mar de praias assoreadas. Mas, desprezando a beleza e sanidade do local, a Covid-19 chegou tão agressiva quanto nos grandes conglomerados.

(MISTRAL)

As mãos más tomaram a vida desde o dia em que a um sinal dos astros ficou o jardim nevado de açucenas. Em gozo florescias. As más mãos entraram tragicamente. Eu disse ao Senhor: Pelas sendas mortais o levam. Sombra amada que não sabem guiar. Arranca-o dessas mãos fatais ou o afundes no longo sonho que só Tu sabes dar. Não posso gritar, não o posso seguir. O barco navega ao negro vento de tempestade. Retorna-o a meus braços ou o leves em flor. Deteve-se a nave rosa de seu viver. Que não aprendeu do amor? Que não teve piedade? Tu que irás julgar o compreendes Senhor.

7-RIO DE JANEIRO

Depois dos fogos de artifícios estourarem sobre as águas da praia de Copacabana iluminando os céus, no mês de março houve Carnaval no Rio de Janeiro e foi amplamente divulgado na imprensa, na internet, na TV, nos rádios. Nesse tempo o vírus ainda não tinha chegado “oficialmente” ao país. As notícias eram mais ou menos assim: o Carnaval do ano de 2019 vai ocorrer no dia 5 de março. O desfile das Escolas de Samba será: dias 1 e 2 (sexta-feira e sábado), desfile da série A; dias 3 e 4 (domingo e segunda-feira), desfile do Grupo Especial; dia 5 (quarta-feira), apuração do resultado e aclamação dos vencedores; dia 9 (sábado), desfile das Escolas Campeãs do Carnaval de 2019. A Escola de Samba Campeã do Carnaval de 2018 foi a Beija-Flor. O título de campeã foi conseguido com o enredo que fez um paralelo entre o romance Frankenstein, cuja 1ª edição completara 200 anos, e as mazelas sociais brasileiras. Corrupção, desigualdade, violência e intolerância de gênero, racial, religiosa, social e esportiva foram encenados pela Escola Beija-Flor, formando um cenário monstruoso de terror e morte. Cenário profético do que poderia advir no ano de 2020.

😯 VELHO E O GATO

Um velho vivendo sozinho num apartamento tendo como companhia um gato preto seria assim como a pandemia dentro da pandemia. O velho nunca aprendeu a língua dos gatos, o gato nunca aprendeu a fala dos homens. Devido às inúmeras altercações, brigas, gritos e outras ameaças, era premente a imposição de regras para que essa convivência não terminasse em tragédia: ou o gato come o velho ou o velho come o gato. Depois de muita conversa que incluiu gestos, palavras e atos, chegaram a um acordo factível. O quesito alimentação foi superado com entrega da comida em casa, que era dividida em harmonia: ora o velho comia sachê, ora o gato comia bife. Assistiam partidas de futebol juntos arriados no sofá cujo assento estava despedaçado de tanto o gato afiar ali as unhas. Na hora de ouvir Schönberg ou Mahler o gato saía da sala discretamente. Mozart ele consentia ouvir alguma coisa, mas detesta hip-hop. Enquanto isso políticos em discussões intermináveis se recusavam a comprar vacinas, hospitais de campanha eram fechados, a compra de equipamentos e todo o mais estritamente necessário para enfrentar a pandemia trazia a corrupção ao lado. Era a realização em carne viva do samba de Carnaval: A corrupção, a desigualdade, a violência, a intolerância, que foram encenados pela Escola Beija-Flor em 2018, anteciparam o cenário monstruoso de terror e morte nos anos seguintes.

Obs: As citações (Mistral) foram extraídas de Sonetos de la Muerte, obra da poeta chilena Gabriela Mistral.